sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Sentimento Oceânico Por Marcos Freitas

Marcos Freitas é um poeta profícuo e, cumprindo a sina dos seus antepassados, nele a intimidade com as letras procura a composição estética sem qualquer esforço. Engenheiro de formação, com pós-graduação na Alemanha, também tira do estranho idioma, que teve de aprender, a tradução em versos de sua obra. Especializado em Recursos Hídricos, faz dos seus afazeres a poesia de um meio ambiente que, mesmo quando maltratado, grita num poema a percepção técnica.
Neste trabalho, que tenho a honra de apresentar, os cantos de jurema nas quenturas do bê-erre-ó-bró são percebidos nas verdesveredas de sua cidade como um Sentimento Oceânico, como se a galáxia fosse tomada por lembranças da sua aldeia.
O livro é dividido em quatro seguimentos. SULEANDO-SE PELAS VERDESVEREDAS traz as lembranças infantis, que foram buscadas nas Dobras Espaciais de Alcubierre, soluções do Tubo de Krasnikov, para entrar no encantamento de uma floresta tupi, substituída por uma concreta plantação de eucaliptos. Pois vejam só, o nosso poeta usa os conhecimentos das ciências exatas para explorar os recônditos de suas memórias sentimentais, onde a máquina Singer da mãe serve de instrumento musical: “dedilha, bem sei mãe, na nova harpa sutis sons de galáxia, estalos eternos de amor”. E também usa o Diário de Pigafetta, documentário da viagem marítima de Magalhães em volta da terra, para sair do sertão da cacimba barrenta e voltar ao cerrado do Planalto Central, não sem antes fazer um inventário das (S)obras do Piauí. Estamos apenas começando uma viagem espacial para dentro do sentimento.
Em ELEGIA ARANI, segunda parte do livro, pode ser num mau tempo e/ou numa cidade da Bolívia. Com os mesmos ares. Porque La Chascona de Neruda, em Santiago, há de ter paciência com o sol. “Ser poeta é estar sempre disposto a se lançar, sem paraquedas, no abismo profundo de sua alma, quando o poema lhe bate à porta”. A árvore da vida, os planos de Brasília (Unheimlich), as realidades não-locais podem ser achados na filosofia de Ernst Bloch? Foi muito pouco traduzido o alemão entre nós, mas é dos sonhos de sua arte que o poeta nos chama atenção, cantando a Laura Moura de Mário de Andrade ressoando em H. Dobal. Pronto, de volta a casa: na sua procura universal retorna a aldeia conquistada por Mandu Ladino: “o canto airoso daquela hora / é canto ladino / é elegia arani”. O nosso herói indígena nos braços da cabocla Jurema. A praça Tahrir é a nossa Pedro II. Pra lá de Dortmund, na Alemanha, a nossa Estação ferroviária, onde um metrô não nos leva a lugar nenhum.
A negra massapê, o amarelo-tauá e o branco caulim são as cores das areias em que caminha a AVIVENTAÇÃO DE RUMOS do terceiro movimento poético. Mesmo contemplando o Morro da Baleia no Goiás, a saudade de sua terra fala mais alto. O nosso anti-herói, o Cabeça de Cuia de nossos rios, sonha em ser descoberto por um olheiro de futebol. As andorinhas da Frei Serafim fugiram todas. Talvez ecoem no Morro do Roncador em Pedro II. Mas as palavras poéticas, ah, essas “palavras / como que formigas enfileiradas / as palavras como águias esfomeadas / flanando – quase sem peso – / no ar”. Aviventam os rumos.
Por último, nas MINUDÊNCIAS recolhe os fragmentos do território do Matopiba. É nesse pedaço de território, do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, que a monocultura assassinou os pés de paus das frutas de nossa infância. E o Matopiba parece ameaçar toda a caatinga e cerrado, encerrando os doces frutos do buriti, do pequi, do bacopari. As lembranças são feitas de um gosto no território dos sentimentos. Para fazer-se mais luz, danificam-se os recursos hídricos. Se na sua profissão, Marcos luta desesperadamente contra o inevitável do progresso que nos matará, o poeta ainda pode gritar no seu movimento político sentimental:
a tarde carregada / de chuva abriu-se / inesperada em sol”.
Edmar Oliveira, Rio de Janeiro, 2015.

NAS ÁGUAS DE UMA POESIA
EMOTIVA E PENSANTE
Anderson Braga Horta
Há engenheiros  poetas e poetas engenheiros.  Os primeiros são os que fazem poesia sem conotações vinculantes da formação profissional, paralelamente a médicos, advogados, químicos, farmacêuticos — e exemplos ilustres destes ofícios incluem um Jorge de Lima, um Guilherme de Almeida, um Bueno de Rivera, mais os diplomados em farmácia Alberto de Oliveira e Carlos Drummond de Andrade. Um engenheiro poeta dos mais notáveis foi Joaquim Cardozo. A lista de profissões e a exemplificação poderiam ir muito longe, se o quiséssemos; mas fiquemos por aqui.
O poeta-engenheiro (vamos agora de hífen, para caracterizar o tipo, independente do viés profissional) é o racionalista, o cartesiano, o objetivista, o que afirma ser o poema uma construção em cujos tijolos a argamassa da inspiração, da emoção, da música e quejandas flutuações (ou invenções, como o seria a primeira...) não tem vez. Para nós, o exemplo mais próximo, e mais notório, é João Cabral de Melo Neto, para quem a feitura do poema dependeria tão-só da página em branco e, sobre ela, o trabalho do poeta. (Verdade que o autor de Morte e Vida Severina seria menos infenso ao que chamamos inspiração —e à música— do que afirmava, e que o reconheceria, de algum modo, num poema de Agrestes, conforme sugiro algures.)
Engenheiro de formação e profissão, não é esse, contudo, o caso de Marcos Freitas. Filia-se ele, explicitamente, a outra estética. É claro que elementos do seu mister se insinuam, aqui e ali, conforme veremos. Do mesmo modo, podemos encontrar algum rescaldo de procedimentos iterativamente adotados pelas vanguardas que pontificaram entre nós nos anos 50, nomeadamente a fusão de palavras (“tristeresina”, em “Da Próxima Vez que For ao Piauí (Cidades que me Guardam”), o emprego de recursos em geral mais próximos de uma poética “a frio”, como o tipo de enumeração praticado em “(S)obras do Piauí” ou a repetição em “Biodiversidade de Eucaliptos”, onde esta palavra é silabicamente desmembrada e reproduzida até a exaustão, com o evidente escopo de ironizar a monotonia esterilizante de certas monoculturas; ainda a repetição em “ser poeta é” (sem título), consistente numa única frase:
ser poeta é estar sempre pronto e disposto a se lançar, sem paraquedas, no abismo profundo de sua alma, quando o poema lhe bate à porta
— retomada paroxisticamente até o fim da página.
Em verdade, Freitas reivindica expressamente a emoção, qual se vê em “Estoicismo, Não”:
emoção — sempre —
à flor da pele:
senão, Zenão.
ou na composição seguinte, “Sangue Vermelho”, dedicada ao poeta Antonio Carlos Osorio (transcrevo parcialmente):
inutilmente construímos barricadas
soletramos gramáticas
deitamos silêncios
e suas raízes
......................
o sangue vermelho
sempre jorrará
das veias e mente de novos poetas
Mas, engenheiro, com pós-graduação pela Universidade Federal do Ceará, pela Universidade de Hanôver (Alemanha) e pela Escola Nacional de Administração Pública (Brasília), é professor e pesquisador na área de Recursos Hídricos, Meio Ambiente e Computação Aplicada da Universidade de Fortaleza, além de especialista em Recursos Hídricos da Agência Nacional de Águas. Aqui, sim, as atividades profissionais coincidem, de modo feliz, com o norte das preocupações do poeta. Não hesita ele em falar das águas, sejam as oceânicas, que se insinuam já no título do livro, sejam as lacustres e fluviais, sejam as de chuva, sejam as de lágrima. Água de poço, em “Cacimba Barrenta”. Mãe-d’água, em “Cantos de Jurema”. Sua carência e, conseqüentemente, gananciosa exploração, em “Cobrança da Água”. O assassínio dos rios, em “Mata Ciliar”.
Dentre essas composições líqüidas, consideremos à parte “Condomínio Verde (As Clouds Sailing Across the Sky)”, em que se tocam notas ecológicas e o lirismo amoroso em (in)fusão, de maneira brilhante:
no Verde ouve-se o burburinho
das águas de riachos do cerrado
no Verde vê-se o navegar de brancas
nuvens no azul de Brasília
no Verde o verde da mata
entorta árvores de pura beleza
no Verde todo o verde
de seus olhos verdes
Vimos que o tema da água pode vir associado a crimes contra o meio ambiente, a danos à natureza, também independentemente tematizados em textos como “(S)obras do Piauí”, “Cerrado(,) Destruído”, “Código Florestal”, “Matopiba”. São poemas sociais, esses. Mas a preocupação social bate ainda noutras teclas, além das ambientais, por exemplo em “Pontos na Curva da Praça Tahrir”, parte dos “Quatro Planos Brasilienses”, “Mehr Licht” (dedicado a Dom Hélder Câmara).
No tocante a procedimentos, acrescentemos aos há pouco indicados o poema figurativo (“Aluvião”), o poema composto com notícias de jornais (“Teresina 159 Anos”), o poema curto e incisivo, de imagens singulares (“Estação”). Assinalemos, por outro lado, as homenagens — a Cecília Meireles, a Mário de Andrade e H. Dobal, a Nicanor Parra e Pablo Neruda, a Salvatore Quasimodo, a Guimarães Rosa. Observe-se, finalmente, que a poética de Marcos Freitas, embora tomando o partido da emoção aliada à razão, não descamba jamais para o pieguismo, abrigando, mesmo, poemas de dicção direta e feição descarnada, a exemplo de “O Carpinteiro Zezito”.
Não é, bem se vê, monótona esta poesia, que nos ajuda a focar de ângulos plurais os diversos aspectos da relevante temática eleita.
Posto isso, que poemas distinguir neste livro? Questão subjetivíssima. Depende da índole, da formação, do gosto de cada um; depende até do momento e das circunstâncias da leitura. Quanto a mim, elejo os meus favoritos (omitindo, na relação, os anteriormente citados): “Lavoura de Galáxias”, pelo lirismo comovente; “Diário de Pigafetta”; “Alinhavo”; “Cânticos ao Guerreiro Mandu Ladino”; “As Palavras”, pela evocação ceciliana; “Andorinhas”; “Fio”, por meditação sobre vida/morte; “A Tarde em Clave de Sol”, pelo múltiplo encanto de Natura; “Mãe” (“mães não deviam morrer”); “anoiteço no vazio de meu poema”; “Brasília — Eixos”, pelo elíptico grito de liberdade; “Azeite de Oliva”, pelo agudo e bem-humorado equívoco; “Diálogos Pós-Modernos”, pela eroticidade singular; “Brasília, Terra de Candangos”; “Meninos do Barrocão”, feliz escolha para marco final (que remete ao início).
Concluindo, resisto à tentação de pinçar daqui e dali peças e momentos antológicos pelo puro prazer de mostrá-los — cônscio que sou, fugindo pretensões quaisquer, de que, se é lícito sinalizar minha caminhada pela poesia que tenho a honra de apresentar, não devo frustrar ao leitor a prerrogativa de conduzir sua leitura/fruição dos poemas como bem o entenda e lhe indique a própria sensibilidade. A ele, pois, a última palavra.

A arquitetura poética de Marcos Freitas

Um símbolo antiquíssimo, figurado por uma serpente mordendo a própria cauda, um Oroboro, está presente na arquitetura poética de Marcos Freitas, nos poemas contidos em “Sentimento Oceânico (verdesveredas ou cantos de jurema nas quenturas do bê-errê-ó-bró)”.
O menino do Barrocão, das piscinas do Piauhy Sport Club, tornou-se homem-poeta aprendendo com o tempo, sobrevivendo as vitórias e derrotas, a vida e a morte. O menino-poeta-homem cresce e renasce; meu fim é meu começo, eis o Oroboro.
As lembranças do Piauí, das terras dos índios, nos meses em bê-errê-ó-bró, o elo ancestral, o berço, a infância. O ciclo de vida e morte da biodiversidade, que margeia os rios no cerrado e noutras veredas, preocupa tanto o poeta, quanto o engenheiro e gestor de recursos hídricos e do meio ambiente, verdesveredas como queremos.
O Oroboro representa o retorno ao ponto de partida depois de cruzar o céu e o submundo, “ser poeta é estar sempre pronto e disposto a se lançar sem paraquedas, no abismo profundo de sua alma...”. Daí viaja através dos oceanos colhendo poesia, escrevendo poemas em outras línguas, imagine. “Brasília, Candango’s Land”, na curva da Praça Tahrir no Cairo, Egito, o útero da serpente.
A poesia de Marcos Freitas traça de forma muito interessante, com beleza e mestria, o ciclo representado pelo tempo a caminho da eternidade, “Um dia - sem querer- /inventarei de inventar palavras e sons/Quando nasci, chorei”. Por outras terras navegadas, plantou um coração verde no planalto central “as clouds sailing across the sky”, que veio do Barrocão, lá em Teresina, no Piauí.

Jorge Amâncio, julho de 2015.






Sem comentários:

Enviar um comentário